Alerta de Spoiler: Os protocolos de segurança não são efetivos para cantar e dar aula de canto.
Se você acha que tá tudo bem cantar e dar aulas de canto presencialmente desde que use acrílico, máscaras, face shield e distâncias de segurança, esse artigo vai mostrar que essas medidas não funcionam para impedir o contágio.
Olá! Aqui é Ian Gonçalves e eu vim falar sobre cantar em tempos de Covid.
Nesse momento complicadíssimo devido à pandemia do Corona Vírus, milhares de pesquisas são feitas diariamente, abrangendo infinitas áreas relacionadas ao tema. É claro que a vez dos cantores uma hora chegaria e esse tema seria estudado. Nesta semana, dia 11 de Abril de 2021, foi finalmente publicada a versão final de um artigo, no Journal of Voice, que estudou exatamente uma das coisas que nós mais precisávamos saber: Como os protocolos de segurança (distância, máscaras, acrílico e face shield) iriam atuar com cantores.
O artigo se chama Sources of Aerosol Dispersion During Singing and Potential Safety Procedures for Singers e está disponível no site do Journal of Voice. Ele investigou as fontes de dispersão de partículas durante o canto seguindo os protocolos de segurança.
(Imagem de um cantor puxando ar para cantar)
Em respeito à pandemia do Corona Vírus, cantar em conjunto foi visto como uma atividade com altíssimo potencial de transmissão do vírus. Apesar disso, ainda não tínhamos algum estudo detalhado sobre isso para que seja visto exatamente o que acontece com os aerossóis durante um canto seguindo os protocolos de segurança.
Como esse estudo foi feito?
Cantores de um coro profissional de Baviera inalaram uma substância de cigarro eletrônico para que, ao cantar, a trajetória das partículas pudesse ser rastreada. Os cantores cantaram em diferentes posições de cabeça, com diferentes textos e articulação, usaram máscaras diferentes, face shield e acrílico.
Esse estudo foi de extrema importância pois, apesar de severas recomendações de pesquisadores desde o início da pandemia, a migração para aula de canto online não foi tão respeitada assim.
Esse estudo saiu essa semana, mas não estivemos mal informados. Foi dito em Julho de 2020, pela NATS, “There is no safe way for singers to rehearse together until there is a COVID-19 vaccine and a 95% effective treatment in place.”.
Foi alertado também pelo CDC - Centers for Disease Control and Prevention: "Singers Could Be Virus Super-Spreaders".
Além disso, versões preliminares desse estudo que estamos vendo hoje já estavam disponíveis desde o ano passado.
Mesmo assim, sabemos o quanto os professores de canto foram pressionados por diversas escolas no Brasil para se arriscassem dando aulas presenciais, mesmo em meio a um número que indicava milhares de novas mortes por dia, em eterna crescente (tudo isso sem um aumento nos pagamentos, sem seguro de vida, sem transporte privado bancado pelas empresas responsáveis pra proteger seus funcionários e suas famílias). A situação dos professores de canto já não era fácil antes da pandemia, pois é uma profissão sucateada pela maioria das escolas, que não pagam nem o transporte e nem o almoço para o professor.
A situação dos professores de canto já não era fácil antes da pandemia, pois é uma profissão sucateada pela maioria das escolas, que não pagam nem o transporte e nem o almoço para o professor. Após a pandemia a situação continuou a mesma, só que agora com riscos de morte, hehe. Quantas vezes não me perguntei se realmente valia a pena arriscar a mim e a minha família pra ganhar, por aula, menos que um lanche do Subway enquanto o aluno deixava fortunas para a escola, que arriscava minha vida como se ela fosse algo pouco significante. Principalmente após ver relatos de amigos próximos que, após contraírem a doença dando aulas nessas escolas, tiveram que continuar dando aulas mesmo assim (online) para receber algum valor no fim do mês (pois elas, as escolas, não iriam paga-los caso ficassem em repouso se recuperando da doença - que foi contraída provavelmente por culpa da própria escola).
Depoimento anônimo de uma professora que dá aula numa rede famosa de escola de música:
"Me pediram pra dar aulas presenciais durante a pandemia, com as tais "medidas de segurança". Eu tive o Coronavírus mesmo assim e, mesmo com atestado, eu dei as aulas online pela escola. Caso eu não desse as aulas, eu não receberia. Mesmo com atestado médico, só recebemos por aula dada. Hoje, com onda roxa na cidade, alguns alunos decidiram não ter aula online. O número de alunos reduziu cerca de 50% e eu só recebo pelos alunos que decidirem fazer aula online".
É sempre importante comentar sobre certas injustiças, porém, como o foco do artigo é outro, vamos voltar. hehe
Em 2020 já foi publicado que cantores estavam associados a um alto potencial de transmissão do vírus (Exhaled respiratory particles during singing and talking - 2020). Foi visto também que a emissão das partículas aumentava de acordo com o aumento de volume. Sabemos que cantores possuem, em sua maioria, volumes muito mais altos de voz por conta de níveis muito maiores de pressão subglótica.
Em diversos experimentos foi visto que, mesmo com distâncias de 1.4 metros ou mais, houve uma grande dispersão do vírus em todas as direções. Estudos anteriores mostraram que as máscaras, em situações de fala e conversação, reduziam bastante a emissão de partículas entre indivíduos, apesar de existirem diferentes tipos e categorias de máscaras com diferentes tipos de eficácia. Isso foi suficiente para que cantores se arriscassem cantando usando alguma delas, mesmo com elas prejudicando grandemente o som e sem sabermos se elas são eficazes, de fato.
Lembre: As máscaras são feitas para situações de silêncio. Elas permitem que você responda alguém, em baixo volume, sem espalhar o vírus, mas elas são feitas para o silêncio. Cantar com uma dessas máscaras fica meio óbvio, pra qualquer um que experimentar, que não funciona. Quem já esteve em uma UTI sabe como lá é um local silencioso.
O teste foi feito com cantores profissionais que exerciam o canto coral em tempo integral. Eles cantaram um trecho da nona sinfonia de L. W. Beethoven. O estúdio usado era ventilado a cada nova etapa para limpar todos os resquícios da etapa anterior. E o que foi visto no experimento?
- Consoantes e Vogais:
- Todos os participantes tiveram de emitir as consoantes /p/, /t/, /k/, /ʃ/ e em seguida as vogais /a/, /e/, /i/, /o/, /u/.
- As consoantes surtiram efeitos sobre a dispersão de partículas por conta das suas características plosivas e fricativas.
A distância percorrida pelas partículas foi menor durante as consoantes do que com vogais.
O tempo 0, no gráfico, representa o momento em que os participantes pararam de fazer sons.
Mesmo após parar de cantar, a nuvem de vapor continuou se distanciando para todos os participantes (isso aconteceu em todas as etapas do processo).
- Articulação exagerada:
- Os participantes tiveram então de cantar o trecho da música de três formas: Com articulação super exagerada do texto, depois com articulação "normal" e depois cantar a melodia com uma única vogal, sem consoantes.
A distância da nuvem de fumaça foi maior de acordo com a intensidade das consoantes. Exagerar o texto fez com que a fumaça fosse mais longe do que cantar normalmente e também fazer com apenas uma vogal.
Foi apontado também que articular o texto fazia a máscara mexer de lugar a cada nova palavra e isso aumentava o escape de partículas.
- Distâncias de "Segurança":
- A: Eles agora então cantaram a frase “Freude, schöner Götterfunken, Tochter aus Elysium”, da nona sinfonia, um de frente para o outro por 3 minutos, numa distância de 3 metros um do outro (distância muito maior do que muitos lugares usam como protocolo de segurança).
- B: O mesmo experimento foi feito por 1 minuto e 40 segundos numa distância menor, de 2.6 metros um do outro (ainda maior do que muitas instituições de ensino de música usaram como protocolo de segurança).
Neste experimento, em 3 metros de distância, a nuvem não entrou no espaço do outro.
Porém, a 2.6m de distância a nuvem de fumaça chegou na boca do outro cantor após 1:30 minutos cantando.
Em seguida ambos cantaram simulando as cadeiras de um coro, com 1.5m de distância e uma diferença de 45cm de altura.
Essa foto foi tirada após 50 segundos cantando.
13 segundos após parar de cantar, as duas nuvens de fumaça se misturaram uma na outra, envolvendo os dois cantores.
O estudo também concluiu e afirmou que o menor impulso de ar já é suficiente para movimentar a nuvem de fumaça de um lugar para o outro, mesmo após ter parado de cantar.
- Diferentes tipos de máscaras:
- As máscaras são os itens mais usados durante a pandemia. Elas impedem, em situações normais de fala, as partículas de saliva de se espalharem pelo ar em grandes quantidades. Isso levou muitos cantores e escolas de música a manterem as atividades presenciais, desde que houvesse o uso das máscaras. A máscara cirúrgica foi adotada pela maioria dos cantores por ser a mais confortável e não barrar muito o som. Mas... Será que realmente funciona para contem o vírus?
- 3 tipos de máscara foram testados: (A) Máscara cirúrgica, (B) FFP2 (semelhante a n95, bico de pato) e (C) uma máscara de pano comum.
Apesar de a disseminação da nuvem de fumaça ter sido menor com as máscaras, nenhuma delas impediu que elas fossem espalhadas pela sala.
A máscara mais efetiva foi a FFP2, apesar de não ter barrado a fumaça.
A máscara cirúrgica teve um desempenho desastroso porque ela tem muito mais frestas que as outras máscaras.
- Face Shield:
- Os efeitos do Face Shield também foram investigados
O Face Shield bloqueou a nuvem inicialmente, porém, em menos de 4 segundos ela se dispersou por toda a região em volta.
O estudo concluiu que máscaras e Face Shields não são suficientes para bloquear a dispersão das partículas contaminadas.
- Parede de acrílico e parede de partituras:
- Uma parede de acrílico pode ser uma barreira de proteção, assim como segurar as partituras na frente da face. É muito comum vermos uma nas mesas de restaurantes. Isso também foi investigado.
Como todos aqui já estavam imaginando, segurar a partitura na frente da boca não conteve a nuvem de fumaça, nem o acrílico.
Apesar disso, o acrílico conseguiu segurar por mais tempo uma maior quantidade. Porém, devido ao alto nível de pressão subglótica e a duração de uma música ser constante, a fumaça acabou se espalhando pelo ambiente.
A conclusão desse estudo é surpreendente, mas não é nenhuma novidade. Desde o início da pandemia foi dito que não existe forma segura de cantar em público antes de haver uma vacina.
As máscaras foram pensadas e criadas para serem efetivas em situações de silêncio e pouca conversa. Usar máscara para cantar é uma ideia completamente fora da realidade. Nem precisa de um estudo científico pra perceber que grande parte do ar sai para fora da máscara com bastante força ao (tentar) cantar com uma delas.
As paredes de acrílico foram também criticadas por não impedirem a nuvem de se espalhar pela sala, pois ela não cria um ambiente totalmente fechado e o cantor vizinho também receberá a nuvem alheia em questão de poucos minutos.
Porém, agora não temos mais desculpas.
O estudo ressalta que as partículas continuam se movendo pelo ambiente, sendo mais um risco para quem ficar no local. As medidas de segurança são pensadas para situação de não-aglomeração e de silêncio, onde as pessoas passam pelos locais de forma passageira. Não são feitas pra você ficar lá por horas usando seu pulmão ao máximo, hehe. São efetivas para que você entre e saia de um lugar com segurança. Para um professor de canto, que ficará na sala por horas seguidas e atenderá diversos alunos, o risco é gigantesco, pois as partículas de saliva se espalham pela sala ao longo do tempo. Ou seja, não basta só barrar elas de chegar até você. A pessoa que se manter no ambiente por muito tempo também se contaminará. Essa informação sempre foi muito óbvia. NY Times afirmou que as partículas contaminadas se espalham por um ambiente da mesma forma que o cheiro de um bolo no forno se espalha pela casa. Saber disso e, mesmo assim, arriscar a vida dos professores (obrigando-os a dar aula presencial), dos familiares dos professores, dos alunos e seus familiares, é uma escolha um tanto difícil de reagir sem perder a postura. Ainda mais sabendo o quão sucateada é a profissão de professor de canto no país.
O que você achou deste experimento?
Você foi pressionado a dar aulas presenciais em alguma escola, mesmo em meio à uma trágica situação onde morrem mais de 4 mil pessoas por dia?
Você pressionou professores de canto a darem aulas presenciais nessa situação?
Você conseguiu se manter online e em segurança no ofício de professor de canto?
Aos alunos e pais de alunos: Não parem as aulas. Não parem com as escolas e nem com os professores particulares. Experimentem as aulas online. Uma aula de qualidade vai ser incrível em qualquer lugar.
Deixe um comentário contando sua experiência!
Nós, professores de canto (mas também os alunos), precisamos nos manifestar contra as aulas de canto presenciais enquanto não tivermos alguma vacina disponível.
Este estudo precisa chegar ao maior número possível de pessoas, principalmente professores e alunos, pois sem uma união entre essas duas partes, dificilmente as aulas presenciais serão interrompidas.
Importante: No curso de Pedagogia e Ciência Vocal, do Mauro Fiuza, tem um módulo com algumas aulas dedicadas apenas ao ensino de aula online.
Meu instagram: @IanGGoncalves
Meu email: ian.voz@icloud.com
Estúdio de Voz - Professor Mauro Fiuza